sexta-feira, 22 de junho de 2018

Impressões de uma Mapuche sobre a descriminalização do aborto


Fonte: lmneuquen.com

Hoje é um dia histórico para o movimento das mulheres, que juntas contribuímos com a nossa semente para a defesa do nosso direito de decidir sobre nossos corpos. Hoje entrará em debate a descriminalização do aborto. Ontem, um jornalista me perguntou: qual opinião das mulheres indígenas sobre essa questão? Fiquei surpresa que alguém neste país se importe com pensa o setor das mulheres mais empobrecidas, coagidas e violadas. Nós mulheres indígenas não somos hegemônicas frente a muitas questões que nos afetam, entre elas: o aborto.

Então compartilharei a minha opinião, como mulher indígena, mapuche, mãe de gêmeos, mãe solo, mãe proletária. Nasci e cresci em uma sociedade sexista e racista. Expressões como "A única coisa que as índias sabem é parir", "Pra que se enchem de filhos, se não podem criá-los?”, "Índias são como animais que abrem as pernas e não pensam" "são pobres porque têm muitos filhos". Coincidentemente, muitas dessas expressões, também atribuídas às mulheres pobres não indígenas, são ditas por homens e mulheres que hoje se definem como PRÓ-VIDA.  Esses mesmos senhores e senhoras, que levantam o dedo para as mulheres que são a favor da descriminalização do aborto e que defendem a defesa da vida como princípio sagrado subjacente à sua posição. Esses mesmos senhores e senhoras são aqueles que não se importam com a vida dos nossos povos e territórios, se mostram apáticos contra a violência aos nossos corpos, aplaudem a forma com que arrancam nossos filhos e filhas e matam-os pela fome, pelo gatilho fácil, o racismo genocida, hoje são justamente os que clamam pela moral e nos falam do direito à vida, os mentores da morte. A hipocrisia histórica da aristocracia fascista. 

Neste país, já vi meninas indígenas se prostituirem pelo pão, já ouvi a dolorosa história de uma menina mapuche estuprada pelo seu tio, que ficou grávida e foi forçada a dar à luz com apenas 11 anos, após o nascimento ela matou seu filho afogado, porque ele representava somente a dor, a injustiça e a raiva. Por tanta impotência, essa menina foi condenada pelo aparato legal que desprezou os seus direitos, mas que pretendia que ela assumisse "suas obrigações maternas", logo o Estado que não assumiu suas obrigações, para garantir uma vida plena àquela garota que nunca deveria ter sido mãe. O jornalista me pediu números, estatísticas que validem nossa denúncia sobre os assustadores feminicídios indígenas que vêm acontecendo. Não existem estatísticas oficiais, não existem estatísticas institucionais de ONGs, essas estatísticas não existem, porque para o Estado e governo nós nunca fomos lembradas, não há estatísticas porque a vida indígena é desvalorizada. Não houve marchas por nossas mortas, nem sequer conseguiram alcançar a dolorosa reivindicação de seus entes queridos às instâncias judiciais. Nossas mortas em sua maioria sequer falam espanhol, muitas delas estão em zonas rurais. Morremos por repressão, morremos presas injustamente, morremos nas mãos de pistoleiros contratados pelas multinacionais e por latifundiários, morremos em abortos ilegais, sim, é um punhal que atravessa a todas, destroçando a alma coletiva das mulheres do mundo. 

No entanto, devo confessar que temo a "legalidade" desse estado e desse sistema, tudo o que é legal se torna uma maneira aprovada e controlada de fazer bons negócios para a Corporocracia. Eu escolho a descriminalização, mas precisarei de um tempo para pensar na legalização. Como mulher mapuche, povo que sobrevive, apesar de tudo, à tentativa de extermínio dos estados, eu escolho a maternidade, mas a quero viver plenamente, e para isso cobro apenas três direitos e nada mais: Autonomia sobre meu corpo, a demarcação dos territórios, autonomia do meu povo.

Esses três direitos em conjunto nos garantirão educação integral para decidir, contraceptivos para não abortar e aborto descriminalizado para não morrer. Podemos recuperar o uso de métodos naturais ancestrais para evitar a invasão e a contaminação dos nossos corpos pelas substâncias químicas, como o uso do Misoprostol, e muitos outros artifícios que a indústria química e farmacêutica quer impor com sua "legalidade" para fortalecer ainda mais o capitalismo voraz. Esse é o primeiro passo para a descriminalização, vamos construir juntas um espaço para o debate sobre como imaginamos ou propomos a legalização. Irmãs das 36 nações indígenas da Argentina, somemos nossa voz, compartilhemos nossos conhecimentos, abramos o debate, mas não silenciemos ou neguemos a realidade de morte existente em cada comunidade pelos abortos clandestinos, que arrancam as vidas das nossas milhares de jovens. Saúdo e abraço a todas as mulheres que fizeram com que este movimento instituinte chegasse como um grito estrondoso ao congresso. Da cordilheira do sul pela livre autonomia dos corpos, territórios e dos povos!

Marici weu!

Moira Millán, weychafe mapuche , puelmapu.
13 de junho de 2018.

Acesse a publicação original aqui

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